sábado, 26 de maio de 2007

Assombração


[...] Bruma, névoa. Vertigem. Suave vertigem de sonho, enredando-a pouco a pouco, com um novelo de lã, macio e quente.

Agora tudo é silêncio. Clara não se move, não pode fazê-lo. É um ser sem vontade própria, envolto pela escuridão que a colhe. Nada vê. Mas todo seu corpo está à estreita, aguardando, pressentindo. Súbito o silêncio é rompido por um rangido da porta e Clara sente seu corpo ser golpeado pelo sopro do ar frio. Está chegando. Seu coração pára ao perceber a aproximação da presença assombrada. Ouve passos imateriais, murmúrios, suspiros. Continua imóvel, como se a noite atasse.


De repente, sente o toque das mãos, primeiro em seu rosto, depois descendo lentamente pelo pescoço, pelos ombros. Nos vapores da noite, o hálito espectral se aproxima, buscando-a. Continua inerte. É um sonho estranho, feito apenas de tato e cheiro. Arrepia-se, estremesse. Pensa que é preciso abrir os olhos e encarar a presença assombrada, mas não o faz. Apenas se mantém à espera, imóvel e silênciosa, para que ela a possua, envolvendo-a no ectoplasma daquele amor proibido. Assombração, fantasma, espectro, fino tecido translúcido vindo de outro mundo, emergindo das sombras, para tomá-la. Tremendo de pavor e desejo, Clara se entrega.


Está agora presa na teia mágica de longos fios, cabelos de seda com cheiro de almíscar que a encobrem e rodeiam, formando a doce tenda que abrigará o beijo, afinal. Sim, o beijo. Os lábios carnudos e molhados que tocam os seus, primeiro suavemente, depois com mais e mais ardor, molhando, sugando, buscando, explorando-lhe a boca, sorvendo-lhe a língua, bebendo-lhe a saliva com louca paixão.


O beijo vai agora tomando posse de todo seu corpo, sanguessuga que a percorre inteira, vencendo as formas, subjugando a matéria, acendendo-lhe, com seu sopro imaterial, o fogo do mais louco desejo. Cada parte de seu corpo é uma cidadela que cai ante a fúria daquele beijo úmido e quente, que transforma tudo por onde passa em chama acesa. Seus seios se entregam e, mal são tomados, já seu ventre se arqueia na busca do contato com aqueles lábios que a devoram como animais selvagens, Logo toda ela é uma flor que se abre para revelar seu mais secreto perfume, essência da fenda misteriosa onde o beijo vai penetrar para sorve-lhe a lama. Aroma, néctar, póle, mágicas porções do amor, todas as delícias que ali se escondem já não são suas, perderam-se na morna mistura de saliva que lhe inundou o ventre, torrente caudalosa que lhe arrebatam, arrastando-a por rios e mares, arrancando as folhas das margens, tomando tudo, tudo dominando, para atirá-la no louco redemoinho do prazer, vertigem que a faz cair no infinito, tendo o céu a seus pés, como se mergulhasse num sonho dentro de um sonho [...]



SEIXAS, Heloísa. Pente de vênus: história do amor assombrado. Porto Alegre: Sulina, 1995. p. 91-92

Um comentário:

Anônimo disse...

lindo o conto... mas ainda prefiro os seus comentários diários.. bjs te amo gatinha

O voo

N os conhecíamos há anos, mas a sinapse do desejo nasceu naquele encontro incidental num voo de volta para o Rio. Era fato que eu não ditava...