terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Sr. N.

Bem, era uma vez um casal que morava na roça, numa pequena cidade do interior de Santa Catarina na divisa com o Rio Grande do Sul. Eles tinham 3 filhos pequenos, moravam num casebre, desses feito de palha e madeira, sem espaço e muito menos conforto.

A vida era duríssima, havia fome e tristeza, mas ainda havia esperança e braços fortes dispostos para o trabalho pesado em plantações dos fazendeiros da região. O casal arrendava pedacinhos de terra para a plantação do próprio sustento e pagava com trabalho árduo, de segunda a segunda, com sol, com chuva, com frio, com geada, deixando os filhos sozinhos em casa, já que eram pequenos e não poderiam ir para a roça.

Eis que em mais um dia de trabalho, capinando um terreno perto de um capão, a mulher - que estava grávida de 7 meses - sentiu-se mal devido ao calor intenso e ao excesso de esforço e caiu desmaiada no chão. O marido correu apavorado em direção à mulher sem saber ao certo o que fazer. Ele foi até a margem de um riacho que passava ali perto buscar água e percebeu que não tinha nem copo ou vasilha para levar a água para sua mulher. Desnorteado com a esposa desmaiada ele arrancou algumas folhas de um arbusto e arrumou-as na mão em forma de concha enchendo de água do riacho. Correndo com cuidado ele levou as mãos no rosto da esposa, derramando a água suavemente em seu rosto e boca, de forma que ela acordasse.

Poucos minutos depois a mulher recobrou a consciência. Seu rosto estava muito vermelho, os olhos marejados, o corpo dolorido tremendo e as mãos sujas de terra segurando a barriga enorme. O marido segurou seu corpo e eles levantaram do chão. Ela se apoiou no ombro do marido e olhou a paisagem por toda sua volta.

Sem dúvida uma paisagem linda, com o céu tomado de um azul inacreditável, daqueles que se a gente forçar bem a vista pode ver os satélites e as estrelas mais brilhantes. Aquele céu, aquela terra, as plantações de fumo e de milho e a BR 101 bem longe a cortar a cidade em duas. Ela pensou na beleza daquilo tudo e pensou na criança em seu ventre que logo mais chegaria a este mundo onde a riqueza pertence a poucos e a fome e a agonia é da maioria. O marido com a cabeça baixa pegou as enxadas caidas no chão e amparou sua mulher no caminho para casa.

E assim os dias passaram, um igual ao outro, a criança na barriga dela nasceu e cresceu junto com seus irmãos. A vida de N. foi de muito trabalho trabalho trabalho casamento e 3 filhas. Uma família grande para sustentar e proteger e mais trabalho e trabalho e perseverança.

Muitos anos depois disso N. levou sua mãe, já bem idosa, para um passeio de fim de semana. Um sítio grande, com a entrada cercada de hortênsias com a cor daquele céu puro. A casa do sítio era grande, bonta e pintada de rosa. Ficava no alto de uma pequena colina, de onde era possível ver a paisagem agora desenvolvida daquele pedaço de mundo aonde seus pais trabalharam por tantos anos.

Após estacionar o carro ao lado da casa N. ajudou sua mãe a sair e a levou para a área de lazer do sítio, perto da piscina e ao lado do ipê grande e florido. De pé ao lado do filho, a mãe sorriu ao reconhecer aquela paisagem, o lugar onde passou metade de sua vida trabalhando de sol a sol.

N. explicou para sua mãe que ele havia comprado aquelas terras, incluindo o local em que ela havia desmaiado durante sua gravidez. A mãe abraçou o filho e disse que nunca poderia imaginar que aquilo tudo seria do seu filho, já que passara tantas dificuldades naquele lugar ao buscar justamente o sustento para eles. "Pois é mãe. Isso tudo agora também é seu."


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Conheço N. há uns 4 anos e na semana passada, enquanto conversávamos, entre um drink e outro, ele me perguntou se era realmente merecedor de toda aquela felicidade alí. Felicidade de ter uma esposa que o amava, de filhas lindas, educadas, batalhadoras e honestas, e de poder reunir familiares e amigos num dia de verão tão lindo. Diante da minha cara com a surpresa da pergunta ele me levou até aquele ipê perto da piscina e me contou essa história com os olhos cor de terra muito brilhantes.

Pode até parecer coisa de novela das 8 da Globo, devido a minha falta de habilidade com a escrita, mas sabe, é real e pegou meu coração em cheio. Eu não sabia o que dizer, deu um nó na garganta e eu só conseguia olhar aquela paisagem e apertar seu braço com força. Conheço a trajetória de N. e sei do esforço, de sua luta na vida, de sua luta conta um câncer e sua honestidade. Diante daquela pergunta eu não consegui responder porque eu estava fazendo esforço para engolir o choro, mas agora eu posso dizer com todas as letras que sim. O senhor N. mecere tudo isso e sou muito grata e honrada por compartilhar de sua amizade, do carinho e amor de sua família.

N., o sr. é o meu exemplo.

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O voo

N os conhecíamos há anos, mas a sinapse do desejo nasceu naquele encontro incidental num voo de volta para o Rio. Era fato que eu não ditava...